domingo, março 12, 2017

Lituânia - o país das jóias de âmbar - parte final

Nosso roteiro pela Lituânia

Afastei as cortinas que escureciam o quarto e escondiam a vista da varanda: o sol nascia no céu claro, refletindo na neve que cobria as árvores, o chão, os bancos. Me encostei no vidro da porta e fiquei olhando a natureza tão diversa da minha São Salvador da Bahia onde apenas o sol, despontado por trás das árvores, era uma imagem familiar. 
Havíamos combinado de sair cedo - tínhamos ainda muito o que ver. Depois de uma ducha rápida e um café com omeletes, partimos pela imensidão de neve e gelo e pinheiros que nos cercavam. Naquele momento todo o mundo era uma imensidão branca e fria e deserta de gente. Só o nosso carro cortava a estrada regelada como as naus outrora deveriam cortar o mar azul. O termômetro do carro dizia que a temperatura exterior era -19ºC. Mas ali dentro as conversas, as risadas e o aquecedor deixavam tudo na temperatura ideal. 

Uns vinte minutos depois de termos deixado o hotel e caído no mundo, resolvi pegar o celular e fazer um vídeo para o Instagram. Mão indo ao bolso e eu, de repente, sentindo minha espinha gelar e minhas bochechas arderem. Meu Deus! o que é que eu tinha feito? Olhei pro Mindaugas com aquela cara de "pxiiii", ele me olhou preocupado querendo saber porque eu estava vermelho. Eu, a vergonha em pessoa, disse: "Acabei de descobrir que esqueci de entregar a chave do quarto". Acho que devo ter dado aquele sorriso amarelo de emoji do Whatsapp. Meu amigo me olhou com um "Oh, Márcio, eu não acredito nisso!". Pensei em várias soluções para o vacilo, mas ele resolveu voltar, meia hora na estrada, indo a caminho daquele hotel bonito e quente cujas chaves do quarto eu trazia de volta em minhas mãos trêmulas de embaraço.  Fiquei em silêncio enquanto o pessoal tentava me acalmar dizendo que não era muito problema, "quem sabe o universo nos livrou de alguma coisa ruim que nos aconteceria?!", e outras frases que de alguma sorte pudessem desenrubescer minhas bochechas. 
Saí do carro com a neve caindo ainda mais pesada sobre meus ombros, como se todo o gelo do mundo estivesse sobre meu corpo acabrunhado. Olhei pra recepcionista e me desculpei mil vezes por ter levado a chave comigo. Perguntei a ela como dizer "me perdoe mesmo" em lituano. Voltei pro carro. Abri a porta e antes de sentar disse: /ash labai atsipraxôu/ e dei outro sorriso emoji. Todos me olharam surpresos com meu curso intensivo de lituano desculpante e meu sotaque perfeito (a vergonha faz cada coisa, hein!). Pegamos a reta mais uma vez. Algum tempo depois vimos ambulâncias e um carro da polícia passando por nós. Havia acontecido um acidente na estrada - dois carros tinham colidido violentamente de frente numa parte do caminho uns poucos minutos adiante do ponto de onde havíamos feito o retorno para o hotel. Mindaugas me olhou e disse: "O universo...".  Continuamos na rota para Riga, a capital da vizinha e tão igualmente fria Letônia (sobre a qual falarei em outro post).  

Krizius Kalnas - A Colina das Cruzes
No meio da estrada, num caminho onde a vista se perde na imensidão do horizonte, paramos o carro. Tudo o que eu via era uma paisagem na qual a neve e a solidão quase reinariam soberbas não fosse pelo punhado de turistas que caminhavam agasalhados sobre a neve, carregando pequenas cruzes e rosários comprados na loja de frente ao estacionamento.
Começamos a caminhar na direção dos peregrinos até nos depararmos com uma pequena colina onde se via ao longe milhares de crucifixos soerguidos sobre a neve branca como uma lembrança do próprio Cristo sobre o Gólgota. Não se sabe ao certo quando começou o costume de se fincar ali as cruzes. Alguns dizem que foi a partir do Levante de 1831 como forma de homenagear os revolucionários mortos pelo exército russo, outros dizem que foi como forma de protesto e resistência contra a ocupação da URSS materialista um século mais tarde. Sendo como for, hoje o lugar permanece encravado ao norte da cidade de Siauliai e é um centro de peregrinação católica tendo sido, inclusive, abençoado pelo papa João Paulo II em visita ao local no ano de 1993 - por isso vemos várias homenagens a ele (encontrei até uma em Português). 
Achei o lugar muito interessante do ponto de vista cultural. No entanto, confesso que caminhar por aquele mar de cruzes, rosários, crucifixos e agradecimentos em línguas diversas no meio da neve alta e pesada me fez ter a sensação um tanto arrepiante de estar numa peregrinação na Idade Média ou em algum lugar da série Game of Thrones, com as pessoas caminhando em respeitoso silêncio por entre os caminhos estreitos e a neve derrapante. Isso não querendo dizer, porém, que eu não gostei de estar ali, gostei muito. A sensação é de realmente ter sido transportando para o tempo onde a fé e a esperança são imortais, resistindo incólumes contra as forças da natureza castigadora e gelada e dos tanques soviéticos, estes os quais por várias vezes destruíram o lugar que novamente foi reerguido pela população de coração inquebrantável daquele país, derrubada após derrubada. A colina das cruzes é um lugar sagrado para os lituanos, muitos dos quais acreditam que uma vez tendo feito a nossa visita tudo em nós se modificará. 

Anykiscius Regioninis Parka - Parque Regional de Anykisius
O dia estava indo cada vez mais frio. O Mindaugas de vez em quando chamava minha atenção para o termômetro do carro. Quando a temperatura exterior alcançou os -22ºC. ele me perguntou a que temperatura estava Salvador-Bahia quando eu saí do Brasil. Depois de saber que naquela noite nós tivemos 32ºC. às 23h ele me olhou com uma cara pensativa e disse: "O corpo humano é mesmo capaz de coisas incríveis! Você deixa o Brasil a +32ºC., enfrenta -22ºC. na Lituânia e continua aí firme e forte". Eu quase ouvi ressoarem em meus ouvidos as notas de "We are the champions" do Queen. Especialmente por entender profundamente aquilo que ele estava dizendo ao observar pelos vidros do carro que a neve se adensava. 
Quando chegamos ao Parque Regional de Anykisius, a temperatura matinha-se nos -22ºC., mas não nevava. Saímos do carro, mãos no bolso, correndo para o centro de atendimento ao turista onde estaria um pouco mais quente. A Ieva sempre me recomendando pôr o gorro e as luvas porque o frio intenso poderia me deixar doente, enquanto eu teimava em querer sentir o frio fazendo minhas orelhas arderem. Compramos o ingresso e partimos como dardos pelo parque. Nossa rota era a  Pedra Puntukas (Puntuko akmuo) e a Trilha Sobre As Árvores.
Meu amigo me disse que aquela era a segunda maior pedra da Lituânia, um país quase plano e de poucas pequenas colinas. Todos os anos, especialmente no verão, as pessoas se dirigem àquele lugar por lazer ou estudo da história local e para ver aquela pedra que ali fora posta, segundo a lenda, por um demônio que tentava arremessá-la contra a igreja de Anykiscius (a segunda mais alta do país), mas o bicho-ruim se assustou com o canto de um galo e a derrubou ali, onde ela permanece até então. A pedra está próxima ao rio que corta o parque e provavelmente foi trazida pela correnteza há milhares de anos, durante o último período glacial, e se tornou um marco no país. Na década de 1940, um escultor local gravou nela o rosto de dois pilotos de avião lituanos, Stepona Darius e Stasys Girenas, pelo aniversário de dez anos de sua morte durante o voo transatlântico no Lituanica. Essa história me foi contada enquanto apressávamos os passos contra o vento frio que fazia os nossos ossos terem a sensação de que quase estavam sendo quebrados. Poses para a foto. Pé na tábua em direção à pequena colina que nos leva a um caminho de madeira e aço sobre a copa das árvores, no meio do parque. No final do caminho há uma torre que se projeta a 34 metros de altura e de onde se pode ter uma das vistas mais bonitas da Lituânia. Ali, naquela altura imensa, o vento castigava. E eu pensava em como a Ieva tinha razão ao me mandar trazer o gorro. Pausa para a foto com dedos quase congelados, pegamos a escada da torre e partimos correndo para o carro, para o calor do aquecedor do carro, para as risadas  da loucura de sair naquele frio pra o alto das árvores e de uma torre de 34 metros! Aventura inesquecível! 

Cosmos
Não poderíamos sair de Anykiscius sem visitar outra atração que é uma queridinha entre os locais, especialmente entre as crianças. O lugar fica em uma casa muito grande de uns dois ou três andares onde funciona uma loja de souvenirs e o Cosmos. 
Essa atração é bem interessante. Você entra numa sala pequena e escura onde de repente luzes se acendem. Porque a sala é cheia de espelhos as luzes se tornam milhares de pontos brilhantes e sua imagem se projeta no que parecem ser miríades de dimensões sobre as quais você está em posições diferentes - eu particularmente me senti na sala do Professor Xavier procurando X-men pelo mundo. A diversão dura cerca de 4 minutos, mas vale a pena ver, acredito que os adolescentes e as crianças se divertirão muito - a Agota e o Mr. King pareceram curtir demais o local. Além do show de luzes, há também uma música tocando o tempo todo simulando o que se ouviria no espaço caso o som se propagasse por lá. Parece que o que ouvimos são ruídos captados por sondas e decodificados em som. 


A hora de dizer "até breve"
Chegamos a Vilnius por volta das 15 horas com um dia extremamente bonito. Meus amigos queriam que eu experimentasse dois pratos típicos lituanos, por isso partimos direto para um restaurante bem aconchegante no centro da cidade. O lugar não podia ser mais bonito e a comida mais saborosa, especialmente porque regada a muita conversa e risadas - nada melhor do que comer em boa companhia!
No entanto, não nos demoramos muito ali porque meus anfitriões queriam que visse mais da cidade. Após a refeição partimos para a chamada TV Tower de Vilnius de onde se tem uma vista privilegiada da cidade a partir de um restaurante giratório no topo da torre. Quando chegamos, o sol estava quase a se pôr e o céu tomava uma cor avermelhada que se refletia sobre as casas, prédios, parques e na neve branquinha depositada sobre as ruas. Ali sentados, torta de chocolate e chá preto com leite, em meio a conversas e aos meninos nos mostrando as fotos que faziam do lugar, parecia difícil acreditar que dali a algumas horas estaria deixando aquela família adorável e seu país maravilhoso. 

Tive na Lituânia alguns dos melhores dias das minhas férias, não apenas pelos lugares maravilhosos que visitei e pelas novas sensações que experimentei, mas especialmente pelo carinho daquela família tão linda e tão calorosa que me recebeu de forma imensamente acolhedora e me proporcionou momentos muito além de tudo o que eu tinha imaginado. 

Antes de nos despedirmos, Mindaugas ainda quis que fizéssemos um tour da cidade e fôssemos ao mercado para comprar um doce tipicamente lituano. Aproveitei a oportunidade, e comprei flores para agradecer aos meus amigos por todo aquele carinho. Vi um bouquê lindo de flores amarelas exuberantes que me chamou bastante a atenção. Comprei-o. Tentei esconder as flores o máximo que pude sob meus casacos. Na hora da partida, entreguei a Ieva o bouquê e agradeci a todos por aqueles dias maravilhosos. Meus amigos agradeceram e me revelaram que na Lituânia flores amarelas são dadas às pessoas de quem não gostamos. Eu corei! Mais um vacilo no pais das jóias de âmbar! Flores amarelas! ai meu Pai do Céu! Todos riram do meu embaraço e me disseram pra relaxar, porque o que valia mesmo era a intenção. 

Talvez seja assim. Mas não só a intenção vale, como também valem as atitudes e todo o apreço, amizade e consideração que de fato demonstramos para com os outros, e aqueles meus amigos ali com certeza são pessoas que sabem profundamente o que isso significa, pessoas que têm a maior alegria em compartilhar todo o seu mundo e esperam apenas que "você tenha se sentido feliz". Fico só esperando o dia em que terei a alegria de recebê-los na Bahia e lhes mostrar as cores todas de que eles me falaram quando eu cheguei "na fria e cinza Lituânia". Nos abraçamos forte e aquela canção não parava de ressoar em minha mente: "Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, dentro do coração, assim falava a canção que na América ouvi (...) qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar". 


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